Não sei direito quem eu era quando entrei na faculdade de medicina em 1991, depois do meu segundo vestibular, na UFSM; porém, me lembro de ser muito esforçada, de ter um objetivo que eu considerava difícil, mas atingível, que dependia apenas de muita dedicação e lembro de ter muito apoio do meu pai e da minha mãe e um propósito que fazia qualquer sacrifício parecer muito menor.
Eu sou a primeira geração da minha família a entrar no ensino superior, muita gente se esforçou demais para que eu chegasse até ali, e, embora as dificuldades financeiras tenham sido uma realidade, eu reconheço o privilégio que tive e tenho por ser mulher branca; comigo, formaram-se 63 pessoas, nenhuma era negra. E dessas 63 pessoas, 42 eram homens, 66% da turma.
Pelo “jeito” como eu me dedicava, levando o namorado que fazia engenharia para assistir algumas cadeiras, pois eu não tinha “horários” para ele, conseguir o diploma era questão de tempo apenas, o grande desafio mesmo seria escolher que tipo de médica eu queria ser, onde eu faria residência, qual residência e onde eu atuaria?
Eu me reconheço extremamente feliz por ter essas questões me afligindo à época, pois elas só foram possíveis porque mulheres como Elisabeth Blackwell, Elizabeth Garret Anderson, Sophia Jex-Blake e aqui no Brasil, Rita Lobato Velho Lopes, lutaram pelo direito das mulheres ocuparem seus lugares nas faculdades de medicina no final do século XIX, enfrentando preconceitos e dificuldades inimagináveis para obter o mesmo nível de educação médica e diploma que era oferecido aos homens.
É claro que a formação da minha identidade passou por tudo que uma vida universitária oferece, tive bons e maus exemplos e, por sorte, consegui encontrar o amor da minha vida com quem tive duas filhas. Uma delas nasceu durante a residência, mas essa é outra história.
Sobre aquele “jeito como eu me dedicava”, eu acho que devo algumas palavras para explicar e eu só fui entender isso depois que minhas filhas abriram meus olhos para o feminismo consciente; sim, embora eu seja feminista desde sempre, nem sempre eu fui consciente disso.
Eu aprendi rápido que eu deveria ser “perfeita em tudo” e acredite, se há um lugar em que o perfeccionismo impera, esse lugar é a escola de medicina, ninguém parece falhar, e há uma competição constante estabelecida, com isso, elevei ainda mais régua. Impus a mim mesma um elevado grau de exigência para ser boa e aceita, o que a maioria das mulheres ainda precisa fazer para ocupar o seu lugar na sociedade. Mas não importava o quanto eu me esforçasse, sempre que eu abria a porta para interagir com um paciente novo, eu sempre tinha que lidar com a frustração de que o paciente esperava um homem no meu lugar. Isso é histórico, estruturado e não é de hoje.
Isso mostra que o trabalho daquelas mulheres do século dezenove não se encerrou lá, temos muito o que fazer ainda, mas já há alguns sinais de mudança; hoje, as turmas de medicina, graças às políticas públicas que estão mais inclusivas e às mulheres que estão ocupando mais de 50% das vagas. Já há mulheres em todas as especialidades médicas, inclusive nas consideradas “exclusivas” do sexo masculino, como traumatologia, urologia, proctologia e neurocirurgia.
Quanto mais mulheres médicas, mais aceitas elas serão pela sociedade e mais a sociedade vai se beneficiar delas, sim, pois embora um tanto ocultas na história contada, as contribuições trazidas à ciência médica pelas mulheres são inúmeras. Olivia Campbell conta em seu livro Women in White Coats sobre o início da disciplina de epidemiologia em 1898 por Janet Lane-Claypton na escola de medicina de Londres, a descoberta dos efeitos protetores do ácido fólico durante a gestação nos anos 20 por Lucy Willls; graças a ela, as mulheres hoje tomam esse suplemento e previnem anemia e defeitos do tubo neural em seus filhos, a fundação de hospitais como o South London Hospital for Women and Children, o Chicago Hospital for Women and Children e tantos outros decorrentes do legado que aquelas mulheres citadas no início desse texto deixaram.
Esse livro conta, de maneira muito embasada, as dificuldades pelas quais as mulheres passaram para poder exercer a profissão médica, e ampliou o meu entendimento sobre suas conquistas.
Se você já coletou um Papanicolau, ou recebeu vacina contra difteria, ou precisou de tratamento como radioterapia, quimioterapia, cirurgia cardíaca, tratamento para fertilidade, para diabetes, para leucemia, malária, herpes, gota, Alzheimer, doença de Parkinson ou esquizofrenia, então você se beneficiou das mulheres nas ciências médicas.
Pesquisas recentes confirmam que mulheres seguem mais os protocolos clínicos e provêm mais cuidado preventivo que os colegas homens. Dados de mais de 1.5 milhões de hospitalizações concluem que pacientes tratados por mulheres tem significativamente menor chance de morrer ou de necessitar rehospitalização e pacientes operados por mulheres também apresentam menor chance de morrer.
(livre tradução de trecho do livro: Women in White Coats, Olivia Campbell)
Eu não sabia de tudo isso quando eu entrei na faculdade, não sabia direito quem eu era, mas aprendi a ocupar meu lugar a ficar alerta e entender que temos o direito de ser quem quisermos, em qualquer profissão.
Ana Claudia Tonelli de Oliveira
MD, Ms, PhD
Referência:
Campbell, Olivia. Women in White Coats: How the first women doctors changed the world of medicine. 2021.
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